3 de setembro de 2018

Todos deveriam ter o direito de lembrar

O ano era 1997, o ano chinês do boi. Acabava a TV colosso na Globo, também a novela Rei do Gado e estreava o Planeta Xuxa. A princesa Diana se despede do mundo e no Brasil tocava "Mineirinho" do Só pra Contrariar nas rádios. Foi lançado o Titanic e toda menina passou a suspirar com o Di Caprio, FHC era o presidente e 3 unidades da bala 7 Belo custava R$ 0,10. Em 1997 eu tinha 10 anos. E você? Como era a sua vida quando tinha 10 anos de idade? Quem era sua melhor amiga? Qual era a sua maior diversão? E o maior desafio que enfrentou?
Lembro muitas coisas dos meus 10 anos de idade, com uma nostalgia boa e infantil. Estava na quinta série no Mathilde Zatar. Era uma das menores meninas (de tamanho e idade) da turma 511 que contava com alguns repetentes e eu sempre dava preferência para as aulas de história com a professora Rejane e as explicações sobre as Capitanias Hereditárias ou as conjugações de verbos com a profe Jaque. Minha roupa preferida era uma saia xadrez vermelha e não lembro exatamente o que gostava de ouvir, acho que era Skank e Gabriel Pensador. Estava naquela fase, meio criança, meio pré-adolescente. Então de vez enquando ainda brincava, seja de andar de bicicletas com a minha melhor amiga da época chamada Daira, que também era minha vizinha de rua e sentava ao meu lado na escola, ou fazia algo mais sossegado com a Simone, amigona até os dias atuais.


Naquele ano fui a Carlota Joaquina num teatro da turma. Sabia que nos livros diziam que ela era feia, mas me empoderei naquele momento, afinal eu era a rainha do Brasil, mesmo que eu nem sabia o que era a palavra empoderar, na época. Também me vesti de gueixa japonesa em outro trabalho e naquela época sushi era tipo caviar, “não vi, nem comi, eu só ouço falar”. Neste trabalho a gente precisava apresentar tudo o que fosse possível da cultura daquele país, então, além de ir vestida com os chambres da avó, minha mãe improvisou um sushi que era só pra decoração, ninguém podia provar aquele peixe cru, se não ia parar no hospital. Isso tudo sem internet, só Barsa e Globo Repórter para usar como inspiração.


Como ainda estava numa fase de transição, eu não vivia nenhuma grande paixonite naquela época, porém meu primeiro beijo foi um selinho num menino chamado Rodriguinho, no jogo de verdade e consequência. Era a festa das bruxas da escola, e eu estava vestida de Vandinha Addams, carregando uma boneca decapitada. Se eu passar pelo Rodriguinho na rua, com certeza não o reconheceria. E tristemente não foi especial para mim, afinal, como disse, não vivia uma paixonite. Na verdade, naquela época quem me irritava era o Eduardo, um coleguinha que estudava comigo desde a 1º série. Ele era bagunceiro, ficava com os olhos puxadinhos quando sorria e gostava de me incomodar. Acho que era dele que eu gostava!

Eu era magrela e baixinha. Os meninos me atormentavam, pois usava lencinhos de cabelo, e era toda mimosa. O xingamento era ser chamada de criança. Que bobeira né?! Afinal todo mundo ali era, não sei porquê isso me incomodava, ou incomodava ou outros. Havia um menino, acho que era Djon o nome, que me pegava no colo e me jogava pra cima, pois achava fofo eu ser levinha. Achava aquilo divertido, em vez de me irritar ou magoar, me sentia uma bailarina que voava.


Já se passaram mais de 20 anos desde então, e eu acabei esquecendo as Capitanias Hereditárias, não ando mais de bicicleta, passei a gostar cada vez mais da cultura japonesa, adoro sushi, não sou mais magrela, mas continuo criançona e não sei por onde anda a maioria dos meus coleguinhas. E você? Conseguiu se lembrar como era a sua vida aos 10 anos?

Sabe por que te perguntei isso? Porque quero falar de um outro menino, o Jamel. Ele não terá memórias dos seus 10 anos, pois teve uma coragem triste e desesperada de acabar com sua própria vida aos 9 anos. Sim, 9 anos. Saiu essa notícia no jornal da semana passada... Esta criança assumiu ser gay aos coleguinhas e sofreu tanto bullying que não aguentou e teve a atitude mais desesperada de todas. Isso me doeu tanto!


Outra coisa doeu...Vi uma reportagem sobre o Pabllo Vittar chorando por lembrar do bullying que sofria, e contando que apanhou no 1º dia de aula da 5ª série, e muitas, mas muitas pessoas achando isso normal. Comentários dizendo que “na minha época” se resolvia isso no recreio. Você acha mesmo que isso se resolve no recreio, no soco, no peito? Você acha que aos 10 anos você tinha preparo para sofrer e se defender desse jeito? Me desculpa, mas talvez você só tivesse preparo para comer merenda e brincar de pega-pega.


Não é que as novas gerações são mimimis, é a crueldade que está aumentando. Então, que tal praticarmos mais a empatia? A dor do outro não é menor do que a minha. Não julgue o sofrimento alheio baseado no que você viveu, ou naquilo que acha que faria caso passasse pela mesma situação. A minha dor de barriga é diferente da sua. A dor da alma de Jamals, Pabllos, Marias, Janaínas, Rafaelas não é menos importante do que a sua.


Ah, e mais uma coisa, se você não gosta das músicas da Pabllo Vittar, tá tudo bem! Mas isso não te dá o direito de ser um idiota. Eu não gosto de música gospel, e nem por isso tenho a opinião que deveriam todos queimar numa fogueira santa. É só eu trocar de canal, ou fazer uma playlist no Spotify. Ah, o problema é que ele é travesti e isso te incomoda? Vai te tratar, pois ninguém nesse mundinho precisa fazer as coisas pra te agradar! Se você acha errado um homem se vestir de mulher, não se vista assim! Pronto! Já pensou que você também deve fazer alguma coisa que em outro lugar deste planetinha alguém acha totalmente errado??? Então...não precisa ficar esbravejando e contaminando o mundo com a sua raiva! Compre um saco de boxe e resolva isso com ele! Todos nós ainda somos seres humanos, respeite as escolhas e sentimentos alheios, hello!


Aos 10 anos, o Rodriguinho só recebeu uma bitoca minha, porque achei que os outros meninos iam parar de me chamar de bebê. Não pararam, mas aquilo parou de me incomodar. Hoje acho graça daquilo e nem de perto foi um sofrimento, era só uma chatice. Pena, que nem todo mundo pode pensar no seu passado e lembrar de meras chatices, mas sim de violência. Sim, meus caros... violência. E não digo uns empurrões na educação física de meninas maiores que você, eu digo de violência contra o corpo, alma e coração. Violência que até cicatriza, mas que não para de doer.

Não deveríamos viver num mundo onde uma criança que nem chegou nos seus 10 anos pensa em se matar. E se você não sabe, estamos no setembro amarelo, mês de conscientização do suicídio. Em vez de cavar mais os poços onde as pessoas deprimidas estão presas, use essa pá para carpir um lote, ou abrir buracos para plantar árvores do bem!



E que daqui 20 anos, esse monte de criançada que tem por aí, possa olhar pra traz e lembrar de quando se tinha 10 anos e era respeitado e feliz!
Pratique empatia. Ensine empatia.

Um comentário:

  1. Lindo o texto l... e emocionante. Me fez pensar em coisas de variadas áreas e tb no exercício de lembrar dos meus 10 anos... iniciou quando minha vida mudou para sempre, quando perdi meu pai.

    Um beijo de carinho

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