23 de fevereiro de 2018

Sonho: Um doce de padaria


A vida é uma grande hipocrisia. Nossos discursos e ações são hipócritas mesmo que a gente não deseje que assim fosse. Nosso chão pode simplesmente sumir quando a gente abre um pouco mais os olhos e os ouvidos e percebe que em nossa volta nem tudo é tão cor de rosa quanto agente diz pintar.

Ontem ouvi uma história. Uma história que não deixou que eu dormisse em paz. Não deixou que eu acreditasse em paz.



Uma menina, linda e calada, entra em uma padaria com uma garrafa e pede para a moça do balcão se ela poderia enchê-la de água. A moça pede que a menina aguarde ela terminar de atender os clientes. Esta garotinha estava descalça e sua mãe a esperava na calçada com um carrinho destes de juntar materiais recicláveis. A criança ficou olhando pro balcão, cheio de doces, salgados e gostosuras, mas não pede nada, até que um dos clientes diz para ela escolher o que deseja comer. Ela aponta para um sonho (irônico não é?!).

A garota pega seu doce, um refrigerante que o mesmo cliente deu e sua garrafa cheia de água e vai em direção de sua mãe, sorrindo para que ela ajude a servir aquele refrigerante gelado em copos, para que ambas pudessem se refrescar na tarde quente que ontem fazia.
Lembra que disse que ela estava descalça? Pois é, um dos funcionários da padaria entregou seus chinelos à menina. Eles nem cabiam em seus pezinhos que aparentavam ter uns 10 anos, talvez menos. E com seus grandes chinelos e um sonho na mão, as duas continuaram sua jornada que ninguém sabia onde tinha começado e quanto tempo faltava para acabar.

Ouvir isto não serviu como um tapa na cara, mas sim como um soco pensando toneladas. Meu quarto é cheio de caixas de sapatos e que só aumentam, fazendo com que eu escolha cada dia de manhã o que quero ter nos pés, qual cor acho que combina melhor com a roupa que estou vestindo, qual é mais confortável para enfrentar o que o dia promete – como se ele prometesse algo cansativo, como o dia desta menina. Trabalho sentada em uma cadeira fofa, num ambiente agradável, e se estou com calor aperto um botão e ele se vai, se tenho sede, em alguns passos tenho água gelada, se tenho fome vou na padaria e escolho o que eu quiser. Ainda reclamo que meu carro não tem ar condicionado e que isto é ruim no verão.
No mesmo dia, uma criança anda descalça no asfalto quente, talvez durante o dia todo ao lado de sua mãe, talvez sem ter tido uma refeição descente, com sede, cansada, e sabe pelo mais o que ambas passaram. Quanto eu tinha 10 anos minhas preocupações iam de fazer o tema de casa, assistir TV e brincar com minhas amigas e prima. Toda noite havia um Danete para adoçar, um banho quente e uma cama macia.

Enquanto eu e enquanto você reclama da vida, tem uma criança não sendo criança. Enquanto eu e você gastamos dinheiro em coisas fúteis, tem uma criança que não tem o essencial. Enquanto eu e você passeamos com nossos animais de estimações perfumados e de banho tomado, há cachorros sendo mortos a chutes na rua. Enquanto eu e você esbravejamos que é segunda-feira de novo, tem muitas pessoas em camas de hospitais desejando sua saúde novamente para poder trabalhar. Enquanto eu e você fazemos cara feia para o que tem no almoço hoje, tem famílias que não terão uma ceia de Natal.


Eu não estou num dia sentimental ou na TPM pra me fragilizar com as coisas. Realmente estou com uma crise moral e incomodada pela falta de justiça, pela desigualdade, pelo egoísmo que temos dentro da gente. Eu tenho vergonha de ter o que tenho, vergonha de viver uma realidade destas. Um dia tive vergonha de ter um nariz (aqui neste texto você pode entender porque: https://goo.gl/SxDt7F) e hoje tenho o mesmo sentimento, a mesma sensação ruim e a vontade de fazer alguma coisa, só não sei o que.

Somos apegados aos nossos objetos, nossa aparência, nosso conforto e sei que isto não vai mudar, que nem eu vou mudar. O ser humano nunca está satisfeito, queremos sempre mais, sempre o melhor, sempre. E repito de novo o quanto sou hipócrita e você também é, pois mesmo a gente vendo o caos perto de nós, não vamos deixar de comprar aquilo que achamos necessário para saciar nossos desejos, sejam eles quais forem.


Mas sinceramente, quero descobrir quem é a menina da padaria. Saber onde mora, do que precisa, para pelo menos eu tentar me redimir um pouquinho com ela e comigo. Enviar um belo presente de Natal, um tênis bonito e confortável, uma roupa nova e graciosa, um brinquedo divertido, para que ela não esqueça que ainda é uma criança, mas principalmente, algo que faça com que ela tenha esperança que os dias possam ser melhores, que acredite de verdade que sonho vai além de um doce de padaria.

Texto escrito dia 18 de dezembro de 2013. Não descobri quem era a menina da padaria.

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